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quarta-feira, 26 de junho de 2013

Bóris Fausto - Sobre a Ditadura

Em 1964, Bóris Fausto tinha 34 anos, era graduando em história pela Universidade de São Paulo -USP.
Não sabia como seria o destino da democracia brasileira e se mantinha positivo, pensando, "inclusive que o novo regime poderia não contrariar nenhuma norma moral, já que a tomada de decisão do golpe estava sendo feita em nome da recuperação e promoção de valores democráticos. 
Não se realizaram esforços para organizar as massas em apoio ao governo; não se tentou construir um partido único, acima do Estado, nem uma ideologia capaz de ganhar setores letrados. 
Pelo contrário, a ideologia de esquerda continuou a ser dominante nas universidades e nos meios culturais em geral." 
O historiador em momento algum nega a existência da ditadura durante o regime militar, entretanto põe em questões que esse momento da história brasileira teve,  mesmo de forma esparsa(e refutável), centelhas de democracia. 
"O regime implantado em 1964 não foi uma ditadura pessoal. Poderíamos compará-lo a um condomínio em que um dos chefes militares - general de quatro estrelas - era escolhido para governar o país com prazo definido. A sucessão presidencial se realizava de fato no interior da corporação militar. Na aparência, de acordo com a legislação, era o congresso que elegia o presidente da República, indicado pela Arena. Mas o Congresso, descontados os votos da oposição, apenas sacramentava a ordem vinda de cima."
...
CULT: E como foi com as pessoas do seu convívio? Como os acontecimentos do ano de 1064 interferiram no seu momento de graduação?
B.F.: Minha posição como estudante era bastante excepcional. Eu era um aluno muito mais velho do que os demais da turma. eu não tinha nenhum grande envolvimento, do ponto de vista universitário. Mas o golpe, nas suas consequências, imediatas para certas pessoas, não todas, não a maioria, mas uma grande parte, tinha algumas coisas de possível. Havia alguma coisa no ar que poderia ir para a esquerda ou para a direita numa situação particularmente tensa. Muita gente não imaginava qual seria a profundidade do golpe. eu me lembro, numa discussão com amigos: será que vão cassar mandatos? Se eles estão falando tanto em restauração da democracia, como é que eles vão compatibilizar isso com cortes no Congresso? Isso é muito contraditório, complicado. Não avaliávamos muito a profundidade daquelas iniciativas. E na universidade se instalou um clima de caça as bruxas, de tensão, de medo. O caso mais típico foi o de medicina, nesse ano de 1964. Havia divisões de carreira e também por razões políticas. Então quando você mistura essas duas coisas, você tem dinamite preparado. Quando houve o golpe, uma situação excepcional, então se criaram muitas condições de dentro para fora, inclusive, a direita da faculdade passasse a dedurar o pessoal que era da esquerda.

CULT:Em que medida o golpe foi ditadura desde o princípio. Havia uma dúvida, na ocasião, se ele era uma ditadura ou não?
B.F.: Naquele momento, a gente, eu, não chegava a perceber qual seria o alcance dessa interrupção de um sistema democrático. "Eles vão fazer uma limpeza, purificar a democracia e nós vamos logo retomar o quadro constitucional. Ou vai haver uma ditadura que vai se aprofundar?" Essa era a dúvida que havia em 64 e 65. Essa dúvida ficou inteiramente resolvida em 1968; com o AI5 ficou claro que tinha se instalado um regime militar autoritário e que tinha vindo para ficar e por muito tempo. até 68 havia uma situação de tensão, de exceção, de violência. a gente não sabia muito bem como seria o desfecho disso, se seria uma transição com muita violência ou se ele consolidaria como uma opção. Hoje se afirma claramente que foi uma ditadura, mas é preciso tomar cuidado para distinguir. Porque quando a gente diz que foi uma ditadura é uma afirmação que cabe de tudo, então é preciso classificar. Foi uma ditadura com algumas características particulares: o Congresso ficou aberto, houve partidos políticos, etc. se você for comparar com a Argentina, é muito diferente. Foi uma ditadura, no Brasil, porque não houve eleições livres, porque quem ficou com o poder foi a cúpula militar. Porque não houve liberdade de imprensa, porque houve violência - a partir de um momento a tortura se tornou instrumento do regime - está claro que foi uma ditadura. A nossa foi muito mais regrada do que a da Argentina.

CULT: E lá ocorreu uma guerra civil.
B.F: Você não tem uma guerra civil aqui, você tem choques, mas choques localizados, aqui você tem um quadro institucional regular; presidências que se sucederam, por meio de eleições fechadas, sacramentadas no Congresso, depois no Colégio Eleitoral. Na Argentina você teve atos mais caóticos e, inclusive muito mais violência.

CULT: Mas essa relativa ausência de choques, essa relativa menor violência, enfim, essa trajetória diferente se deve a quê?
B.F.: Tem a ver com circunstâncias de determinados países e de determinadas situações. No caso brasileiro, 
você tem o fato de que não há uma polarização muito grande da sociedade, 
das diferentes classes sociais, 
então isso reduziu muito o impacto dos choques, porque não houve choques, e possibilitou a existência de uma ditadura que operou uma série de reformas, que era pouco mobilizadora e que se apoiava nos seus êxitos econômicos e também na fraqueza da oposição, além da percepção de certos atores políticos como o Geisel que, por exemplo, permitiu que se fizesse uma transição suave para o regime democrático.

CULT: Poderia me explicar quais são essas características?
B.F.: Uma sociedade que tem como característica um maior grau de composição entre os diferentes atores políticos.
...
CULT: Quatro décadas representam uma distância razoável para podermos contar a história de 1964? A documentação é, de fato, acessível?
B.F.: A respeito de distância, hoje, é muito corrente entre os historiadores a ideia de fazer história do dia anterior, uma história imediata; não há mais preconceito em se falar do passado próximo. eu ainda peguei um tempo em que os velhos professores diziam não ser possível estudar a Primeira República porque era muito cedo, "isso vira política, e não história". 
Os brasileiros entraram nesse campo, porque ninguém trabalhava nesse campo. Dá para fazer história recente, dá, mas há limites. Entram nossas opiniões, a nossa paixão. se você controlar um pouco essa paixão e usar o seu testemunho procurando ser um pouco mais objetivo, pode-se ganhar muito com isso, pode-se apresentar com um relato uma análise muito mais interessante. com relação a documentação, falta de documentação, geralmente é pretexto. a respeito de 64, existem lacunas. Mas existe uma quantidade de coisas abertas, uma parte dos arquivos americanos estão abertos, existe o material de imprensa, mesmo que a imprensa em certos períodos tenha sido censurada, existem inúmeros depoimentos de pessoas que viveram essa época, problemas de documentação, sinceramente, não existem. O episódio da guerrilha do Araguaia, foi bastante exposto. uma das vantagens da distância, é o de se olhar mais para o conjunto, de se ter um pouco mais de frieza em relação a esse período, que não se revela só coisas negativas. todo esse período do regime militar é um período contraditório, ele não tem apenas aspectos negativos - são eles que saltam à vista, mas eles não explicam todo o conjunto do regime militar.

CULT: Você nunca foi ameaçado por ele?
B. F.: Eu tive apenas duas breves prisões, uma em 64, por três dias, e outra no começo dos anos 70, quando fui detido por algumas horas.

CULT: Porque o levaram, já que não era engajado?
BF.: Em 64 fui levado por causa de um inquérito policial militar. Fui processado e ganhei um habeas corpus. O caso terminou aí.
No começo dos anos 70, fui preso apenas porque recebia uma pessoa que tinha envolvimento com opositores. Acharam, então, que eu poderia ter. A diferença é que depois de 68 tudo era arbitrário, pois se quisessem me deixar preso, realmente poderiam. Veja a diferença do quadro de 64, fui pelo caminho judicial e consegui. a repressão se agravou muito. Depois de 68 você já não tinha direito ao habeas corpus e não tinha para quem apelar; se alguém desaparecesse, não se sabia a quem procurar. Nesse sentido, pode-se falar que houve uma democratização da violência, porque isso atingia todo mundo, aqueles contatos de classe média, a ideia de que vou falar com fulano ou sicrano para me ajudar, tudo isso desapareceu.

CULT: E o que teria acontecido se não tivesse ocorrido o golpe de 64?
B.F.: É verdade que nós havíamos chegado a uma situação econômica grave, paralisação no Congresso, radicalização do setor organizado, tudo isso tornou as chances de um golpe algo muito grande. É difícil imaginar o que teria sido o Brasil sem o golpe, mas é evidente que o Brasil estava precisando de uma série de medidas de contenção do plano econômico que teriam de ser feitas no âmbito do regime democrático, mas isso não se realizou. O que ganhou realmente força foi a opção por um golpe.
Eu acho que a lição da época, para as pessoas de hoje é justamente a lição que diz respeito à questão da democracia mais do que a qualquer outra coisa, porque em 64, a direita realmente não apostava no regime democrático, mas a esquerda também não apostava na democracia como um valor muito importante, relevante era uma reforma social, ou para certos grupos, a revolução. Democracia, para alguns, era até um entrave para essa perspectiva de grande transformação social, então, uma das tragédias desse período foi esse abandono da crença na democracia e na necessidade de preservar um sistema político. era muito difícil preservar um sistema político, mas quado não há consciência disso, as coisas se tornam muito mais complicadas. Havia pessoas que buscavam um ajuste do sistema democrático. Mas a tendência na época era de que a democracia era um instrumento, e pode ser um instrumento útil e pode não ser. O que isso tem a ver com os dias de hoje? As gerações novas vivem um clima democrático, com todos os problemas de hoje (violência urbana, etc) mas com tudo isso você tem um regime que se discute, opiniões são ditas, pessoas são eleitas e a imprensa fala. Tudo isso faz parte do ar que se respira. É preciso dizer que essas são conquistas de enorme importância e que, para quem viveu em uma situação de fechamento, ficou registrado que essa época foi uma lição para que isso não aconteça novamente.


Trechos da entrevista do historiador Bóris Fausto, concedida a  Janaina Rocha, publicada na Revista Cult em março de 2004

Foto: fiz em 12 de Setembro de 2011, durante a  manifestação em frente ao mostrador digital que registra o montante de impostos arrecadados. O impostômetro é uma iniciativa da Associação Comercial de São Paulo e foi instalado na diagonal do Páteo do Colégio - Marco Zero de São Paulo.




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