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quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Desejo de Morrer

     Há uma imagem que me vem com frequência. Compõe-se de um conto de Kipling, que li certa vez, sobre um lugar terrível onde havia o costume cruel e supersticioso de atirar os moribundos numa cratera enorme, cercada de areia escorregadia que os impedia de voltar à vida, caso se recusassem a morrer como deviam e fora predeterminado. Alguns continuavam a viver, prolongando a existência graças a uma fonte de água, aos restos de comida que lhes eram jogados e aos corvos que capturavam.
     Trata-se de uma história ignóbil. No entanto a imagem não se apresenta com esse aspecto às minhas intuições. Estas me dizem algo infinitamente promissor, suave e sugestivo, assim: "Estes são os semimortos e você também é um semimorto. O jeito é morrer um pouco mais e tudo ficará bem." E como preciso "morrer" no sentido indicado pelas minhas intuições!
     Afinal de contas, o eu deve ser estudado e conhecido no sentido socrático, só para que possamos eliminá-lo. É este meu pretexto para utilizar as reflexões como matéria de dissertação. Desejo ardentemente dispor de mim mesma.
esperemos que o produto final das minhas meditações seja algo parecido com a caricatura que Miguel Ângelo fez de si mesmo no mural do "Juízo Final": um saco vazio retirado do cozido purificador do purgatório.
     Que morte é essa que me esforço tanto por alcançar?
     Na verdade, ela nada tem a ver com esse esquecimento esperado ou, no mínimo, com a transferência de um lugar (agora intolerável) para outro, sentimento que estimula o generalizado "desejo de morrer", dominante na atmosfera nos dias de hoje. 
Parece que, vivendo de modo pleno e livre demais, as pessoas consomem a vida com rapidez e começam bem cedo a esperar a morte. Essa é uma visão do assunto.
     Alguns dos nossos antepassados tinham uma visão diferente da vida e da morte. Eles se serviam da vida com muita cautela e circunspecção, como uma obrigação não muito agradável que se cumpre com a cara ligeiramente voltada para o lado. Seus olhos concentravam-se noutra parte. Consideravam as ocupações humanas como meios pelos quais a alma é forjada, e a substância da alma tinha de ser recolhida em pequenos pedaços preciosos, o destilado do viver e da experiência. O mundo moderno mudou radicalmente o processo. Hoje escolhe-se uma experiência como se escolhe o vinho da prateleira, para fortalecer exatamente aquela parte da natureza humana que nossos antepassados consideravam sacrificável, a borra do fundo do cadinho.
é possível que nossos antepassados tenham percebido a fímbria de uma verdade, porque ela os circundava de longe. Um punhado de coisas delicadamente enfeitadas bastava para dar um pálido colorido às suas ambições e prazeres mais terrenos e para fazê-los depreciar a vida.
     Suspeitamos, contudo, que não compreendiam que uma morte digna advém de uma vida de amor, e é possível que, ao morrerem, o céu que encontravam tenha se revelado tristemente familiar.
Suponhamos, porém, um tipo raro de pessoa, de espírito excepcional, que considere a morte e a vida um fenômeno único e busque realizar todo o esplendor na própria natureza psicológica. 
     Nesse processo, essa pessoa poderia desenvolver capacidades incomuns. 
     Então, como semelhante atrai semelhante, poderia se inclinar, por simpatia, pelos de sua própria espécie, porque esse é o caminho seguido por qualquer espécie nova. Penso que existem seres assim e se eles não formam comunidades geográficas, constituem, na verdade, o que pode ser chamado de "comunidades de pensamento". E. nesse sentido, podem eles estar corporalmente "mortos", ou até mesmo "vivos"? Se esses dois desajeitados termos -partes de uma incessante experiência - devem ser levados em conta, não serão, no caso presente, um tanto irrelevantes?

Parte da introdução do livro O Processo da Intuição, de Virginia Burden, publicado pela editora Pensamento e traduzido por Daniel Camarinha da Silva

A foto acima chama-se 20 de Setembro, 
fiz hoje, no Butantã.
     

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Buda e Suas Vidas Passadas

“Com o coração assim resoluto, assim aclarado e purificado, limpo e purgado de coisas impuras, manso e apto a servir, firme e imutável – foi assim que adeqüei meu coração ao conhecimento de minhas existências passadas – um só nascimento, depois dois … e assim sucessivamente até… cem mil nascimentos, muitas eras de desintegração do mundo, muitas eras de sua reintegração, e novamente muitas eras de sua desintegração e de sua reintegração. Nesta ou naquela existência passada, lembrava-me de meu nome, meu clã, minha casta, meu regime alimentar, minhas alegrias e sofrimentos, e duração da minha vida. Depois passei a outras existências subseqüentes nas quais tais e tais eram meus nomes e assim por diante. Depois passei à minha vida atual. E assim recordei-me de minhas diversas existências passadas em todos os detalhes e características. Este, Brâmane, foi o primeiro conhecimento que alcancei na primeira vigília daquela noite – a dissipação da ignorância e a conquista do conhecimento, a dissipação da escuridão e a conquista da iluminação, como convinha à minha vida estrênua e fervorosa, purgada do eu.
Com esse mesmo coração resoluto eu procurava agora entender a partida de outros seres, deste local, e seu reaparecimento alhures. Com o Olho Celestial, que é puro e em muito transcende a visão humana, vi criaturas no ato de partir deste local e reaparecer alhures – criaturas nobres e abjetas, agradáveis ou abomináveis à vista, bem-aventuradas ou desgraçadas; todas elas colhendo o que semearam. Havia seres comprometidos com o mal em suas ações, palavras e pensamentos, que denegriram o Sublime; foram vítimas de sua falsa perspectiva; na dissolução do corpo após a morte, esses seres reapareciam em estado de sofrimento, infortúnio e adversidade, e no purgatório. Por outro lado, havia também seres afeiçoados ao bem em suas ações, palavras e pensamentos, que não denegriam o Sublime; tinham a perspectiva correta e recebiam a justa recompensa; na dissolução do corpo após a morte, reapareciam em estado de bem-aventurança no céu. Tudo isso vi com o Olho Celestial; e este, brâmane, foi o segundo conhecimento que alcancei na segunda vigília daquela noite – a dissipação da ignorância e a conquista do conhecimento, a dissipação da escuridão e a conquista da iluminação, como convinha à minha vida estrênua e fervorosa, purgada do eu.
Com o mesmo coração resoluto eu procurava agora o conhecimento de como erradicar os Samskaras. Compreendi o mal corretamente e em toda sua extensão, a origem do mal, a cessação do mal e o caminho que leva a cessação do mal. Compreendi corretamente e em toda a sua extensão o que eram os Samskaras, sua origem, cessação, e o caminho que leva a sua cessação. Quando percebi isso e quando vi isso, meu coração libertou-se do samskara dos sentidos, do samskara do retorno à existência e do samskara da ignorância; e assim liberto, veio-me o conhecimento de minha Salvação na convicção de que cessara o ciclo dos renascimentos; vivi na plenitude da virtude; minha tarefa está terminada; aquilo que fui não sou mais. Este, Brâmane, foi o terceiro conhecimento que alcancei na terceira vigília daquela noite – a dissipação da escuridão e a conquista da iluminação, como convinha à minha vida estrênua e fervorosa, purgada do eu.” 
Fonte: Majjhima-nikaya, VI Bhaya-bherava-sutta Tradução para o inglês de Lord Chalmers, 
Futher Dialogues of the Buddha, I  - Londres 1926

A foto fiz ontem, violeta, a tarde violeta