"Ninguém precisa apresentar o gênio da arquitetura moderna, Oscar Niemeyer. Todos sabem que Lúcio Costa fez o traçado de Brasília, e Oscar a sua arquitetura: uma arquitetura que ultrapassa a nossa época e atinge plenamente nosso futuro.
Entrevistei Niemeyer. É um homem com maneiras simples, sem vaidades, sem formalismos, com o olhar um pouco melancólico, um pouco desiludido e cansado. E não me pareceu nem por um instante que estava desiludido e cansado com Brasília: é com o nosso mundo, tal qual nele vivemos.
-Porque arquivaram seu plano para a execução do aeroporto de Brasília?
-A Aeronáutica não pretendia recusar meu projeto. Recusou-o o Brig. Castro Neves, com a mesma arbitrariedade com que meses antes despediu cinquenta professores do Centro Técnico da Aeronáutica de São José dos Campos, uma atitude que não recomenda, num país como o nosso, onde faltam técnicos e professores, e que, no caso do aeroporto de Brasília, muita coisa pode explicar: o desrespeito pela nova capital, pela prefeitura e pelo Congresso, a intransigência que impediu o diálogo, como se, diante de problemas nacionais, homens da direita e da esquerda não pudessem se aproximar e entender.
Explica, também as manobras ridículas que o pequeno grupo da Aeronáutica - que não a representa - adotou para impor o monstrengo em execução, declarando publicamente ao Congresso tratar-se de um aeroporto militar, para, depois, contradizendo-se, comunicar a Justiça Federal que a obra em realização será a maior estação de passageiros da América Latina.
Tudo isso levou-nos a ação popular que acompanhamos tranquilos. Nosso objetivo é paralisar a obra, e, principalmente, denunciar o Brig Castro Neves por esse crime contra a nova capital, impondo-lhe uma estação de passageiros que nada tem a ver com sua arquitetura. Quando combatemos o projeto apresentado pela Diretoria de Engenharia da Aeronáutica, não procuramos atingir nossos colegas daquela repartição, mas a interferência negativa do Brig. Castro Neves nesse projeto, comprometendo-o irremediavelmente.
- Acha que Brasília, depois de pronta, em sua essência, atenderá o ideal democrático que sua arquitetura pretendeu quando a planejou?
- A arquitetura não impõe nem sugere determinada política. No Palácio do Planalto, previ uma tribuna externa, e dela, infelizmente o povo brasileiro nunca ouviu7 as decisões que reclama. Mas somos otimistas. Um dia ela terá a utilização justa, afinal, o Palácio é do povo e as minorias dominantes não poderão substituir.
- Oscar, qual seria a solução arquitetônica que você daria às favelas cariocas?
- Nenhum arquiteto consciente se propõe a resolver o problema das favelas. Sabe que a miséria decorre da injustiça social e que o êxodo do homem do campo em busca dos grandes centros tem sua origem na situação desesperada de exploração e miséria que há séculos o persegue.
Trata-se portanto, de um problema social que somente uma modificação de base poderá resolver. Por todas estas razões, para o arquiteto, realmente empenhado no problema, a solução lógica é integrar-se nos movimentos progressistas que visam a reforma da sociedade. Quando um arquiteto insiste na importância da arquitetura social e nas formas simples pré-fabricadas que sugere, esquece que essa arquitetura só é válida em país socialistas, nos outros, nos países capitalistas, como o nosso, ela se limita a pequenas realizações demagógicas, fora da escala que o problema estabelece. É possível apenas mudar as favelas de lugar. Para extingui-las, teríamos que ir fundo no problema que se baseia na discriminação social, e, desculpe o lugar comum, na exploração do homem pelo homem.
- Eu uma vez escrevi: "A construção de Brasília: a de um estado totalitário." Que é que você acha dessa minha impressão, Oscar?
- Quando Brasília foi inaugurada comentei no meu pequeno livro Minha Experiência em Brasília, o seguinte: "Com a mudança da capital, Brasília mudou muito, e vemos com pesar que o ambiente se transformou por completo, perdendo aquela solidariedade humana que antes o distinguia, que nos dava a impressão de viver num mundo diferente, num mundo novo e justo que sempre desejamos. Vivíamos naquela época como uma grande família, sem preconceitos e desigualdades, morávamos em casas iguais, comíamos nos mesmos restaurantes, frequentávamos os mesmos locais de diversão, até nossas roupas eram semelhantes, unia-nos um clima de confraternização proveniente de idênticos desconfortos. Agora, tudo mudou e sentimos que a vaidade e o egoísmo aqui estão presentes e que nós mesmo estamos voltando, pouco a pouco aos hábitos e preconceitos da burguesia que tanto detestamos. Passamos a nos preocupar co a indumentária e a frequentar locais de luxo e de discriminação. Vemos os nossos companheiros - os mais humildes - apenas de passagem, e sentimos que uma barreira de classe nos separa. Nossas casas perderam aquele aspecto proletário que antes os atraiam, como se fossem as suas próprias casas, ou um prolongamento do nosso escritório, e o conforto que hoje desfrutamos - embora modesto - os assusta e intimida, retendo-os à nossa porta, como aguardando um convite indispensável. A conversa perdeu aquele calor humano - simples e inocente - que nos refazia, conduzida agora pelos que chegam - com nossa repulsa - para assuntos de lucros e especulações, penas aqueles companheiros não mudaram, co as misérias e reivindicações de sempre.
Brasília mudou muito e isso nos deprime, apesar de compreendermos as contingências decorrentes da cidade que cresce e que durante algum tempo, pelo menos representará o regime capitalistas com todos os seus vícios e injustiças. Somos entretanto otimistas. Breve a ilusão que perdemos será realidade."
-Eu uma vez escrevi: "Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, dois solitários." Também escrevi: "Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem da minha insonia, veem nisso uma acusação; mas minha insônia sou eu, é vívida, é meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles e deixaram o espanto inexplicado. a criação não é uma compreensão, é um novo mistério." Que é que você acha disso, Oscar?
- Sua observação me deixa satisfeito. Meu intuito ao projetar a arquitetura de Brasília foi, antes de tudo, fazê-la diferente e, se possível, plena de surpresa e invenção. Pretendia uma arquitetura que a caracterizasse e, nesse aspecto, sinto-me realizado, vendo que seus elementos arquitetônicos - as colunas do alvorada, por exemplo - vão se repetindo, utilizados nas formas mais diversas (construções, objetos, símbolos etc.). Um dia, há dois anos, passava por uma rua em Paris, quando vi, surpreso - estávamos no Natal! - as colunas do Alvorada construídas em tamanho natural, como decoração do edifício da Kodak. E agradou-me mais ainda ouvir certa vez de André Malraux esse comentário: "As colunas do Alvorada são os elementos arquitetônicos mais importantes depois das colunas gregas."
- Porque você acha que escrevi: "Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer."
- Porque Brasília lhe parece uma cidade sem vida. Volto a André Malraux. Quando Le Corbusier comentou que Brasília estava ameaçada de abandono pelo Governo de Castelo Branco, ele respondeu: "Será uma pena! Mas que belas ruínas teremos."
- Eu escrevi: "A alma qui não faz sombra no chão." "É urgente: se não for povoada, superpovoada, uma outra coisa virá habitá-la. E se acontecer, será demais: não haverá lugar para pessoas. Elas se sentirão tacitamente expulsas."
- O vazio da nova capital, ainda em construção, volta a impressioná-la. Se os operários que a construíram nela estivessem vivendo, se a sociedade fosse mais justa e a vida boa para todos, talvez Brasília não lhe desse esse sentimento de e angústia e solidão. Afinal, Brasília já conta co cerca de trezentos mil habitantes, mas a grande maioria, infelizmente, não vive nem participa de sua vida.
- Quais são seus projetos agora, Oscar?
Meus projetos se adaptam às circunstâncias e às convocações que recebo. Agora, por exemplo, sigo para a Argélia, convidado pelo governo argelino para elaborar o plano urbanístico de Argélia, convidado pelo governo argelino para elaborar o plano urbanistico de Argel, o monumento à Revolução, a Universidade de Constantino e um centro esportivo. Os temas me atraem e por outro lado trata-se de uma país como o nosso, cheio de problemas e esperanças. Vou primeiro a Argel, depois a Paris assistir o lançamento da pedra fundamental do edifício sede da PCF, daí seguindo para Portugal, Madeira e Líbano, a fim de supervisionar meus projetos. Com você vê, encontro fora do Brasil uma receptividade que me comove. É arquitetura que se impõe e se divulga por todo o mundo.
- Quais as características da arquitetura brasileira?
-A arquitetura brasileira assumiu desde os primeiros tempos uma posição definida e própria no movimento moderno, ingressando corajosamente nas formas livres e inovadoras que hoje a caracterizam. Ao contrário do "ângulo reto", eram a curva e suas relações com o concreto armado e nossa tradição barroca que nos atraíam. Hoje, passados muitos anos, recordamos com agrado esse período importante de nossa arquitetura; as críticas fáceis que a ignorância e a insensibilidade permitiam, criticas que os arquitetos do mundo, cansados de tanta repetição, hoje repudiam, atraídos como nós para a invenção arquitetural. Fomos os primeiros a recusar o funcionalismo absoluto e dizer francamente que a forma plástica em certos casos (quando o tema o permite) pode prevalecer que a beleza uma função e das mais importantes na arquitetura. alguns arquitetos de outros países conduziram os seus trabalhos dentro desses princípios, mas publicamente nunca os admitiram. Estas as características da arquitetura brasileira, características que se mantém inclusive nas obras pré-fabricadas destinadas a coletividade sem prejuízo de suas razões fundamentais, de tempo e de economia.
- E o caso Kennedy?
-Shiran Shiran é um pobre diabo, e os motivos que apresenta para explicar seu crime - ódio a Kennedy etc. - não mais convencem a ninguém. Os assassinatos dos irmãos Kennedy e de Luther King estão na mesma linha de violência, e, ao meu ver, os reacionários, os racistas, os grandes trustes e o império industrial militar é que poderão explicá-los. é a reação que, alarmada diante do mundo melhor que desponta, recorre a violência, a guerra e a mistificação. Mas a própria guerra do Vietnã nos faz otimistas, mostrando aos povos subdesenvolvidos que o poderio se abala quando a razão, a coragem e a determinação estão presentes.
- Que pensa da nossa juventude?
- Quase sempre julgamos a juventude pensando na juventude de nossa geração, esquecemos que hoje ela está mais adulta, mais esclarecida e interessada em todos os problemas da sua época, dai sua revolta diante desse mundo de privilégios, guerras e preconceitos. representa um movimento de esquerda, porque para a esquerda segue a humanidade. um movimento indefinido mas cheio de espontaneidade e idealismo. Somente os reacionários, os donos do dinheiro, dos privilégios e preconceitos a combatem. A juventude representa o futuro, o mundo melhor que até hoje não conseguimos construir. Você está me perguntando qual é a coisa mais importante do mundo, qual é a coisa mais importante para a vida de uma pessoa como indivíduo, e é o que é o amor. Respondo-lhe, saber situar-se neste mundo de alegrias e tristezas que vivemos, certos de que não estamos sozinhos, que milhões de criaturas nos cercam, e que a vida é injusta e sem perspectivas. Sentir a fragilidade das coisas e a pouca importância de tudo que realizamos, ter prazer em ser útil e solidário co os que sofrem, usufruindo da vida os momentos de prazer e ilusão que ela nos propicia; dar ao amor o sentido universal que merece. Nascemos para amar. Para isso, sem consulta fomos depositados neste planeta."
Imagem: Fiz no dia em que Niemeyer completou 104 anos, dia 15 de dezembro de 2011.
Clique no link abaixo e veja um excelente artigo de autoria de Armando Milioni para o Jornal da Ciência - OSBPC, que descreve a passagem do Brigadeiro Castro Neves no comando do ITA e sob que circunstâncias se deu sua exoneração pelo Presidente General Castelo Branco. O artigo dá os tons que compõe a cena do período da construção do aeroporto de Brasília, ao qual alude Niemeyer no início da entrevista para Clarice Lispector, que retirei do coletânea de entrevistas "Clarice Lispector de Corpo Inteiro, publicado pela ARTENOVA.
Esta entrevista foi publicada durante o período de governo militar, também chamado de período de repressão. Atualmente, na chamado período democrático, críticos ao governo sofrem retalhação e perseguição pela máquina ideológica montada pelo governo trabalhista, que tanto através da violência do fogo e do chumbo, quanto pela paciente assimilação ideológica, cala mais dia menos dia, toda e qualquer oposição.
Fica a impressão de que ping pongão como este da Clarice e do Niemeyer não são mais possíveis.
http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=44903
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