Devem existir milhões de pessoas que sabem que Cirano de Begerac é personagem de ficção numa peça teatral de Edmond Rostand; um personagem que foi descrito como tendo um nariz enorme, e que andava sempre matando gente que mencionasse isso; um personagem que era poeta, dramaturgo, perspicaz, romântico e tão audacioso amalucado a ponto de travar combate a espada contra centenas de opositores ao mesmo tempo e de derrotá-los também. Que extravagante imagem de um herói impossível!
Cirano, porém, viveu realmente! Foi uma pessoa real, que efetivamente possuía um nariz enorme (não tão como se mostra na peça), e que na verdade combateu duelos (talvez não tão extravagantemente como na peça), tendo até uma luta com centenas de adversários ao mesmo tempo, da qual ele realmente saiu vencedor: e era de fato poeta, dramaturgo, homem-de-espírito e romântico (talvez não bem na extensão apresentada na peça).
Contudo, a coisa mais importante a respeito de Cirano de Begerac, do verdadeiro Cirano, é mal-mal referida na peça. Afigura-se que, além de tudo o mais, Cirano foi um dos primeiros escritores de ficção científica; o melhor dentre eles, talvez, até o tempo de Júlio Verne.
Saviniano Cirano de Begerac nasceu perto de Paris, em 6 de março de 1619. Em 1638, quando se encontrava ainda na adolescência, mas já havia conseguido uma formidável reputação de espadachim, entrou para o serviço militar. Entretanto, permaneceu no serviço ativo uns poucos anos, por ter sido duas vezes ferido seriamente. E, em 1643 (ainda com apenas 24 anos de idade), ele passou a escrever por profissão.
Escreveu várias tragédias para o palco francês, Moliére, por condescendência, tomou de empréstimo umas poucas cenas.
A obra-prima de Cirano, entretanto, ou, pelo menos, a porção de seus escritos pela qual ele é conhecido nos dias de hoje é Uma Viagem à Lua, da qual uma edição foi subtraída e impressa sem permissão de Criano, em 1650.
Cirano morreu em Paris, em 28 de julho de 1655 (com idade de 36 anos), em conssequência de ferimentos causados por uma trave que caiu sobre sua cabeça - o acidente talvez tenha sido prepaprado por homens que ele ofendera. Depois de sua morte, a primeira edição autorizada de "Uma Viagem à Lua foi publicada em 1657; e, em 1662, a sua sequência, Uma Viagem ao Sol, também foi publicada. Ambas as obras apareceram originalmente na forma em que Cirano as escreveu.
A coisa mais interessante, a respeito do livro e da sequência, é a descrição de Cirano, quanto ao método de se alcançar a Lua. Até aquela época, as viagens à Lua tinham sido feitas por meio de jatos de água, por veículos atrelados a bandos de aves e com o emprego de anjos ou demônios para o transporte. Cirano procurou descrever métodos nunca antes utilizados, e selecionou não mesnos que sete!
1 - A pessoa poderia untar-se com miolo dos ossos. Visto que se acreditava, naquele tempo, que a Lua atraía o miolo, e a pessoa poderia erguer-se com ele até a Lua. (Isto é pura lenda, naturalmente, e sem valor algum).
2 - A pessoa poderia aplicar frascos de orvalho ao próprio corpo, e elevar-se quando o orvalho se levantasse. (O orvalho efetivamente se eleva, ao contrário do miolo dos ossos, mas apenas porque ele evapora. Mesmo como o vapor, ele se ergue no máximo a alguns quilômetros no ar - mas não se evapora nem um pouco se se encontra num frasco fechado.)
3 - A pessoa poderia ficar de pé em cima de uma chapa de ferro, segurando um imã. Atiraria o imã ao ar; a chapa o seguiria; apanharia o imã e o atiraria de novo. Desta maneira, a chapa seguiria o imã até a altura em que os seus músculos pudessem sustentá-lo, ao longo de todo o percurso até a Lua, talvez. (Este recurso parece bom, mas não funciona. Imagina-se o leitor em pleno ar: se atirar o imã para cima, empurrará a chapa para baixo o suficiente para anular o seguinte movimento para cima, e o sistema todo será puxado para baixo, para a Terra, pela gravidade.)
4 - A pessoa poderia encher de ar um recipiente hermético, aquecê-lo e forçá-lo para fora de uma abertura. (Isto é uma visão do avião a jato, e , naturalmente, funcionaria somente enquanto o ar circundasse o recipiente. Ao tempo de Cirano, entretanto, estava-se apenas começando a compreender que o ar se encontrava limitado às vizinhanças da Terra, e que entre a Terra e a Lua se entendiam muitos quilômetros de vácuo. Até a época de Cirano, dava-se como certo que o ar enchia o espaço todo entre a Terra e a Lua.)
5 - A pessoa poderia encher de fumaça um globo e, visto que a fumaça sobe, o globo, conduzindo um passageiro, poderia erguer-se até a Lua. (Isto é uma visão do balão, mas, de novo, funcionaria somente se o ar enchesse o espaço todo entre Terra e Lua.)
6 - Poder-se-ia conceber uma máquina como um grande gafanhoto de ferro, e mantê-la pulando pelo ar por meio de explosões de pólvora. (Isto é uma visão do aeroplano, mas o que Cirano precisaria seria de uma hélice, no lugar de pernas e asas planas.)
Nenhum destes seis métodos funcionará, percebe o leitor, seja porque se acham baseados em mitos, seja porque são mecanicamente impossíveis, seja porque são inoperantes no vácuo. Mas, então, há um sétimo método descrito.
7 - O leitor pode ligar foguetes à sua nave.
Acontece que este é o recurso com o qual o herói de Uma Viagem à Lua começa a sua excursão através do espaço. alguns soldados franceses, no Canadá, ligam foguetes à sua nave, para brincar, e os disparam. A nave espacial vai a grande altura no ar, e , quando o impulso dos foguetes cessa, o miolo dos ossos com que o herói untou o próprio corpo o conduz ao longo do resto do caminho.
Como se verifica, o princípio do foguete pode levar um homem à Lua; trata-se de técnica por meio da qual homens foram, na realidade dos fatos, conduzidos à Lua, em 1969.
Este é um notável lampejo de intuição da parte de Cirano, visto que o princípio do foguete depende da Terceira Lei do Movimento, que foi primeiro enunciada por Isaac Newton, em 1687, muito depois da morte de Cirano.
Depois do aparecimento do grande livro de Newton, no qual ele descreveu as três leis do movimento e elaborou a lei da gravitação universal, tornou-se extremamente fácil ver que o princípio do foguete funcionaria, e também o porquê.
Cirano, porém, existiu antes de Newton cerca de quarenta anos. ele concebeu a idéia antes de qualquer outra pessoa.
Quando o pé de Neil Armstrong tocou a Lua, assinalando esse gigantesco passo para a humanidade, em algum lugar, no Valhala reservado aos escritores de ficção cinetífica, o espírito de Cirano deve ter sorrido.
Tinham sido necessários três séculos, mas a mais notável visão individual, da história da ficção cinetifica, se havia tornado realidade.
Extraído de o Início e o Fim de Isaac Asimov - Publicado pelo Circulo do Livro
Foto: Madalena, pintura do italiano Francesco Rayes
Foto: Madalena, pintura do italiano Francesco Rayes
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