|
Retrato de Marie, Chantal, Agenor, Marinagela e Heitor, e O Poço em Troyes/França, pintei em óleo |
Epícuro viveu durante um período considerado decadente na Grécia -semelhante ao tempo presente - sem o explendor; encontrava-se perdida em meio a uma crise sem precedentes em sua história.
O sistema social que permitiu que por mais de seis séculos o cidadão grego vivesse para o ócio produtivo havia desmoronado, e o enfraquecimento político gerou a fragmentação daquela sociedade.
As instituições públicas e os deuses do pantheon grego estavam desacreditados. Esse complexo quadro de decadência leva Epícuro a propor duas atitudes para executar e conquistar o objetivo da existência humana. A primeira é buscar a vida prazerosa sustentada na amizade.
Isto seria o princípio do seu hedonismo ético implicado na busca constante do prazer.
A segunda é uma atitude prática: a fundação da comunidade auto-sustentável. Entende-se essa última ação como o sonho de todo cientista social, governo, ou empresário contemporâneo.
Quando Aristipo de Cirene afirmou que o supremos bem do homem consistiria no prazer físico, com certeza ele não estava sonhando, pois afinal, o fisiculturismo, outra marca do nosso tempo, sempre esteve em alta na magna Grécia.
A prova disso são as Olimpíadas, a maior festa religiosa dos helênicos, que era o único evento, além da guerra, que reunia todos os povos gregos para celebrar as habilidades do corpo e a força física.
A boa forma física era considerada uma manifestação divina materializado nos feitos dos atletas.
Entretanto nenhum outro pensador além de Epícuro levou mais seriamente a proposta de que o fim último da vida é o prazer. Na sua trajetória ascendente no mundo intelectual grego, antes de chegar a Atenas, teria, provavelmente, ensinado em Colofon, depois de receber iniciação filosófica em sua cidade natal (nasceu em Samos, no ano de 341 antes de Cristo).
Na capital intelectual do mundo antigo, o pensador observou que as escolas deixadas por Platão e Aristóteles viviam praticamente do glorioso passado, sem nenhuma preocupação com o decadente presente.
Decidiu então fundar sua própria escola, pois entendia que tinha que dizer algo novo para seu tempo e para o futuro.
A revolução promovida por ele teve início inclusive na escolha do lugar, um prédio na periferia de atenas com um grande jardim, e que estava longe do tumulto daquela grande cidade. Nesse local, Epícuro inicia sua vida inovadora de pensador.
No aspecto prático, cria uma comunidade auto-sustentável.
Seus discípulos não apenas freqüentavam-na, mas viviam lá em tempo integral. eles plantavam o essencial para viver em harmonia e todos procuravam desenvolver os prícípios propostos po Epìcuro, e tomavam contato com a cultura filosófica geral.
Alguns pensadores chegaram a comparar a comunidade de Epícuro com os mosteiros medievais ou com as comunidades alternativas de hoje.
Nas suas escolas não ensinava os utilitarismos dos sofistas e nem a elitização do acesso à cultura, privilégios dos cidadãos gregos do período filosófico clássico. O objetivo maior de sua comunidade era preparar pessoas para obter qualidade de vida.
Assim, o primeiro ensinamento era o de buscar o máximo de qualidade de vida, com harmonia e sabedoria. Diga-se de passagem, Epícuro é o autor deste conceito. Por trás desse conceito está a identidade da ética epicuréia, que pode ser demonstrada por esta citação da carta a Meneceu: "Assim como dos alimentos (o sábio) não deseja a porção mais abundante de todas, mas a mais agradável, do tempo deseja desfrutar não o mais longo e sim o mais propício." Neste ensinamento podemos encontrar as duas dimensões da alimentação. a primeira é o prazer, em suas palavras, "o mais agradável". A segunda, na expressão do pensador, "o mais propício" trata da dimensão da saúde que até hoje está esquecida em nossa cultura alimentícia e que nesses dias começa a ser recuperada. O compromisso de coexistir harmonicamente era assumido por todos os membros da comunidade, fraterna e solidaria, numa partilha de afetos, bens e sabedoria.
Nesse ensinamento se apresenta o conteúdo da proposta do "filósofo dos jardins".
Já no segundo ensinamento encontra-se o que há de mais nobre no pensamento desse pensador, também o motivo pelo qual se tornou, por muito tempo, censurado ao extremo.
(A perseguição ao pensamento de Epícuro foi tão forte que de suas trezentas obras, cinco chegaram até o nosso tempo, sendo três cartas completas e em torno de trinta fragmentos de outras duas obras).
Numa visão de conjunto, os ensinamentos consistem em buscar o prazer e celebrá-lo na amizade.
Seus preceitos foram duramente castigados pela cultura ocidental, em sentido moral e religioso que viu na questão do prazer a banalização da sexualidade humana, restrita à finalidade da procriação.
Essa realidade ainda continua em alguns segmentos religiosos e entre os moralistas conservadores.
Numa possível leitura, o pensamento de Epícuro é atual e desejado por empresários que anseiam por empresas estáveis, auto-sustentáveis e lucrativas, como também pelo poder público no desempenho de suas funções econômico-sociais. Nesse momento da história parece-nos que Epícuro está vivíssimo no mundo governamental e empresarial, ainda que estes não tenham consciência disso.
Por outro lado, o mesmo não ocorre no âmbito psicológico e social das pessoas. Enquanto personagens anônimos, o homem do nosso tempo experimenta a sociedade como algo complexo e estranho, da qual não tem uma consciência adequada de seus critérios e valores, do se processo e também de seus objetivos.
Essa realidade atrapalhou no sentido de formar uma idéia de sua origem, sua caminhada, seu presente e seu futuro.
Desse modo, ele vive de improviso em uma sociedade minuciosamente planejada, situação que o leva a embarcar em algumas armadlhas existenciais de uma qualidade de vida imediata quase sempre realizada por um processo consumista que compromete sua liberdade pessoal e seu poder de conquista. Assim sendo, esse homem se divorcia de sua vontade de realização.
O resultado dessa dinâmica gera o esvaziamento do conceito de qualidade de vida que o homem contemporâneo tanto almeja. Além disso, nessa experiência o homem perde o contato consigo mesmo enquanto sujeito, e se reduz a um objeto de uma existência anônima.
Perdida a liberdade, ele é tomado por estranhas necessidades que o impossibilitam na construção subjetiva do seu conceito de qualidade de vida. Nesse ponto, ocorre, também, o divórcio entre vida prática e pensamento teórico.
Um homem descrente de si e ocupado por necessidades estranhas que se apresentam no campo de suas responsabilidades canaliza a busca de qualidade de vida num consumismo desenfreado.
Outra forma de manifestação da falsa busca desta qualidade de vida está presente na cultura da sorte. Esta realidade leva o homem contemporâneo a acreditar que é mais fácil mudar sua vida apostando nas várias dezenas de loterias existentes do que gerar novas possibilidades pelo trabalho ou pela produção de novos conhecimentos.
É a ideologia da desvalorização da ação do homem como modo de transformação da vida para melhor. Dessa maneira, ele cada vez se vê mais distante do prazer e não o satisfaz a idéia da parafernália consumida para lhe oferecer qualidade de vida.
No pensamento de Epícuro, o prazer de viver é celebrado na amizade e não na aquisição de bens materiais.
A natureza do prazer epicurista pertence a ordem do ser e não do ter.
A conssequência disso é que o prazer deixou de pertencer a subjetividade, ao interior do homem, e passou para o lado objetivo da sociedade mercantilista. Nesse momento o sujeito tornou-se deficiente e necessitado de objetos externos, sendo estes que o fazem ser.
Isto é o que denominamos de armadilha existencial.
Assim, o prazer dos bens adquiridos não traz o prazer desejado ao homem porque o sacrifício pela compra o afasta da experiência prazerosa.
Partindo do princípio de que a riqueza que se adquire é a de objetos, o prazer da aquisição cai no esquecimento, e abre espaço para novos desejos, já que o sujeito continua pobre e divorciado de suas vontades subjetivas. Sem contato com a subjetividade do seu eu, esse homem vive a condição da coisificação de si.
Tornar-se coisa significativa, deixar de ser sujeito e se reduzir à condição de objeto.
Em outros termos, isso significa do divórcio do homem de suas vontades e dos seus desejos e a sua redução à experiência do necessário. Isto é grave para a conquista da qualidade de vida, pois significa afastar o homem da consciência de si e levá-lo ao comprometimento do espaço de sua liberdade.
Por fim, o pensador hedonista foi raptado pelos mentores neoliberais que o prenderam numa caverna e projetam constantemente as suas sombras na parede do fundo da caverna.
O homem do nosso tempo, de costas para as luzes do mundo verdadeiro, busca nas sombras de Epícuro o prazer que ele propôs, mas que só se pode conquistar no mundo das luzes de sua consciência subjetiva. Desse modo, o homem corre atrás de sombras de prazer e não se satisfaz porque as sombras pertencem ao mundo externo e não ao interior desse homem.
Entretanto, a genialidade de Epícuro supera a astúcia de seus raptores que são mantidos no camarote da caverna, bastante ocupados com o trabalho de fiscalização do espetáculo incessante de projeção de sombras. Dessa forma, também eles não conquistam o prazer de um viver qualificado pelo fato de estarem ocupados em pensar o viver objetivo da sociedade. Também entre estes falta tempo para celebrar a amizade, palavra apagada do dicionário do viver prático dos promotores e dos expectadores do espetáculo.
A superação dessa realidade é difícil, pois o tetrapharmakon precisa ser trocado por outro medicamento, porque o diagnóstico de Epícuro que separa o medo dos deuses, da morte e da dor, além do sentido atribuído ao prazer, mudou. Tudo isso nos leva a propor a manutenção das propostas de Epícuro.
Entretanto, a aplicativa, isto é, a prática precisa ser recriada.
É necessário decretar a aposentadoria do remédio Tetrapharmakon pelo fato de outros fatores terem surgido no processo que adoece o ser do homem e o impede de celebrar a vida prazerosa na amizade.
Este é o estado de sanidade proposto por Epícuro e com o qual concordamos na construção do novo fármaco social para viabilizar essa condição.
Gilson Cláudio Barbosa de Miranda - Ciencia e Vida, Editora Escala
Na cultura ocidental o homem sempre se perguntou
sobre o fim último da vida,
e diversas respostas marcaram diferentes momentos
da história de nossa civilização.
Algumas dessas respostas foram importantes
no processo de construção de nossa cultura.
Por exemplo, para Aristóteles, o fim último da vida
é a busca da felicidade pela prática da virtude.
Para os pensadores cristãos, por outro lado,
seria a salvação da alma conquistada pela
prática da moral cristã. Uma terceira resposta
foi formulada por Aristipo de Cirene,
o seu pensamento hedonista foi sintetizado por Epícuro.