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quarta-feira, 3 de abril de 2013

Chaga Histórica - do Estado de São Paulo

Ele tinha uma concepção polarizada do mundo. 
Via o mundo dividido entre amigos e inimigos, entre chavistas e pitiyanquis (simpatizantes dos americanos), entre patriotas e traidores. 
Descobri sua vocação social em livros e ensaios. Mas uma coisa é vocação social, outra a forma na qual essa vocação é praticada. Obcecado por uma admiração anacrônica pelo modelo cubano, Hugo Chávez tumultuou as instituições públicas venezuelanas, corrompeu a companhia estatal Petróleos da Venezuela S A e foi protagonista do que poderá se revelar o maior desperdício de riquezas públicas de toda história latino-americana. Mas embora os seus erros econômicos sejam de tão grande magnitude, empalidecem diante das chagas políticas e morais que infligiu ao país.
Chávez não só concentrou o poder: ele confundiu, ou melhor, fundiu sua biografia pessoal com a história venezuelana. 
Nenhuma democracia prospera onde um homem, supostamente "necessário", único e providencial reivindica a propriedade privada dos recursos públicos, das instituições públicas, do discurso público, da verdade pública.
O povo que tolera ou aplaude essa delegação absoluta de poder numa só pessoa abdica de sua liberdade e condena a si mesmo a adolescência cívica, pois essa delegação supõe a renúncia à responsabilidade sobre seu destino.
O principal prejuízo é a discórdia no interior da família venezuelana.
Nada me entristeceu mais nas visitas a Caracas (nem sequer a escalada da criminalidade ou a visível deterioração da cidade) do que o ódio dos microfones do poder contra o amplo setor da população que divergia desse poder. O ódio dos discursos, dos cartazes, dos punhos fechados, dos arrogantes porta-vozes do regime em programas de rádio e TV, das redes sociais infestadas de insultos, mentiras, teorias conspiratórias, desqualificações, preconceitos.
O ódio do fanatismo ideológico e do rancor social. O ódio surdo à razão e impermeável a tolerância. essa é a chaga histórica que o chavismo deixa. Quanto tempo levará para sanar? E poderá sanar? É um milagre que a Venezuela não tenha descambado na violência partidária e política.
Há algumas semanas com o agravamento da doença de Chávez, antecipei sua imediata santificação, como ocorreu com Evita Perón na Argentina, mas dada a tradição caudilhista da Venezuela, a sacralização de sua figura será mais profunda e permanente. Hugo Chávez conseguiu a imortalidade com que sempre sonhou.
Na alma de muitos dos seus compatriotas (e de não poucos simpatizantes na América Latina), ele compartilhará das glórias do Libertador. Até o comandante Fidel Castro poderia sentir-se relegado, vítima de um suava , porém implacável parricídio.
O que acontecerá agora, depois de sua morte? Tudo pode ocorrer, até a divisão interna do chavismo em uma ala ideológica e uma militar ou a vitória da oposição. Contudo, é provável que o sentimento de pesar, somado à gratidão que um amplo setor da população sente por Chávez, facilitem o triunfo de um candidato oficial nas eventuais eleições. para isso contribuirão os órgãos eleitorais, fiscais, judiciais e - em parte - os legislativos, que continuarão nas mãos do chavismo. Seu retrato, sua cadeira vazia, sua imagem retransmitida interminavelmente, acompanharão por muito tempo o novo presidente.
Os indicadores de alarme são de domínio público. O déficit fiscal corresponde a 20% do PIB, cerca de US$70 bilhões. O dólar cotado a pouco mais de seis bolívares, triplica no mercado negro. A inflação vem sendo, há anos, a mais elevada da região. A escassez, decorrente do desmantelamento do parque industrial, do êxodo da classe média profissional  e da falta crônica de investimentos) virou quase uma tradição venezuelana.. Há uma aguda carestia de divisas. Como explicar que um país que na era  de Chávez auferiu mais de US$800 bilhões de receitas petrolíferas apresenta contas tão alarmantes?
Boa parte da explicação está no petróleo. Em 1998, a Venezuela produzia 3,3 milhões de barris diários e exportava (e cobrava) 2,7 milhões. Agora a produção despencou para 2,4 milhões de barris diários, pelos quais cobra apenas 900 mil (os que vende aos EUA, o império odiado). O restante, que ele não cobra, divide-se assim: 800 mil vão para o consumo interno, praticamente gratuito (e que gera um polpudo negócio de exportação ilegal); 300 mil destinam-se a pagar créditos e produtos adquiridos na China; 100 mil são gastos com a importação de gasolina; e 300 mil vão para países do Caribe que pagam (quando pagam) com descontos e prazos enormes ou simbolicamente, como Cuba, que "paga" seus 100 mil barris com o envio de médicos, professores e policiais ( e se beneficia do petróleo venezuelano a ponto de reexporá-lo).
Um presidente chavista deverá enfrentar essa realidade e encarar o público. Mas esse mandatário já não será Chávez, o hipnótico, Chávez, o taumaturgo, o líder que explicava tudo, minimizava tudo. as pessoas culparão os chavistas por não estarem à altura do seu legado. Dirão: "Chávez não teria permitido isto", "Chávez teria resolvido isto". Chegado a este ponto, o próprio regime chavista talvez se convencesse da necessidade de um diálogo de negociação, que agora parece utópico. E ai se poderia abrir uma oportunidade concreta para a oposição.
Depois dos longos anos de inconsistências, omissões e erros, a oposição venezuelana mostrou-se unida, escolhendo um líder inteligente e determinado (Henrique Capriles) e teve bom desempenho nas eleições: recebeu quase sete milhões de votos. Durante a agonia de Chávez, sem deixar de levantar a voz de protesto, mostrou uma notável prudência que deve confirmar nestes dias de dor e comoção. se a oposição-  que esperou tanto - conservar a coesão e a presença de espírito, poderá avançar nas eleições legislativas, regionais e presidenciais e recuperar as posições que perdeu. Uma força latente também deverá despertar os estudantes. Eles exerceram papel fundamental no referendo de 2007 (que impediu a conversão aberta da Venezuela ao modelo cubano) e talvez voltem a exercê-lo.
Acredito que, com a morte do grande caudilho "messiânico"("Redentor" como o chamou abertamente o próprio Maduro), a Venezuela encontrará, cedo ou tarde, o caminho da concórdia: se nos quinze anos de Chávez a violência verbal não transbordou para a violência física, é razoável esperar que não explodirá agora. E a mudança poderá ser contagiosa. cuba, a Meca do redentorismo histórico, o único estado totalitário da América, poderá reformar-se, como a Rússia e a China.
Toda região poderá oscilar então, entre regimes de esquerda social-democrática e governos de economia mais aberta e liberal. e para que o trânsito seja menos acidentado, os EUa também deveriam dar sinais inéditos de sensatez, cancelando o embargo a Cuba e fechando a prisão de Guantanamo.
O século 19 latino-americano foi o século do caudilhismo militarista. O século 20 sofreu o redentorismo iluminado. ambos os séculos padeceram co os homens "necessários". Talvez no século 21 desponte um novo amanhecer plenamente democrático.

Este artigo é de autoria de Enrique Crauze, foi publicado no jornal O Estado de São Paulo, no domingo, dia 10 de março. Compartilho tardiamente porque é jornal que apanho do lixo reciclável do meu prédio, para forrar o chão para Willow, o inconveniente é que o artigo é relativamente velho, mas se é sensato não perde a validade, penso.
O Crauze, como diria o Gandra, é muito lúcido no seu comentário, mas daí a declarar que não escorreu sangue na ditadura da Venezuela? Talvez tenha esquecido as invasões e desbordamento a pau nas manifestações de dez anos atrás (pelo menos), ali se tratava de baixar a crista dos rebeldes, depois devem ter se ajoelhado, mas eu lembro que fiquei horrorizada com as fotos do caos social venezuelano da época em que pesquisei para escrever a crônica abaixo. 
E a Willow, heim? Até isso faz de bom. Levanta estas oportunidades de ponderação para nós, depois faz xixí em cima, mas esta eu salvei.

Foto: Tartaruga das Galápagos de Orelha em pé!


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